quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Senhores passageiros

tumblr_lcbtn4J0qi1qa2p95o1_500_largeComo costumam dizer os poetas, ela tinha olhos tristes. Mesmo debaixo dos óculos escuros, ela tinha olhos mais tristes do vôo 1074.

Se ajeitou um pouco na poltrona porque as costas já lhe doiam, como se já não bastasse a dor da partida. Sempre imaginou que essa era uma das vantagens de ser baixinha: sofrer menos em viagens de avião. Nessa viagem não; nessa, com certeza ela era a que mais sofria, afinal nossos sofrimentos sempre são os mais tristes - por serem nossos. Respirou fundo e o cheiro do cachecol em volta do pescoço a fez lembrar dele. Os dois se despedindo no terminal, ela se acabando em lágrimas e pedindo desculpas. Lágrima nenhuma limparia os erros daquela viagem; nem se fosse possível chorar lágrimas de Vanish ou álcool gel e esfregar bem. Ele disse que "tudo certo". Acima de tudo era um cavalheiro.

Apertou o cachecol em volta do pescoço, bem menos por causa do frio e bem mais porque fora um presente dele - logo na chegada, quando gostavam um do outro sem culpas. Anoitecia lá fora, mas ela não tirou os óculos escuros do rosto porque as bochechas molhadas e a maquiagem borrada já denunciavam demais sozinhas. Ela não ia entregar seus olhos tristes para aquela gente que ela não sabia nem os nomes, apenas os números do assento.

Ficou contente quando o piloto anunciou turbulências fortes, porque assim podia fingir que tinha medo de avião e usar a turbulência como desculpa para suas fungadas e quietude. O piloto fez uma escala fora do roteiro; ela desejou inconsequentemente que o avião não partisse. "Me deixem descer! Eu fico aqui e vou à pé atrás dele, dizer todas as desculpas esfarrapadas que eu ainda não usei e que de nada vão adiantar". Queria que fosse proibido voar novamente, assim ela teria uma desculpa para vagar sem rumo.

Ao desembarcar, as malas pareciam não pesar nada comparado ao peso nas costas. Todos os clichês ficaram no fundo da mochila.

Ela vai prestar queixas, armar um barraco no aeroporto: não foi essa a minha bagagem! A minha era mais leve.

Um comentário:

Afonso Rosa disse...

Qualquer "mera" coincidência condiz totalmente com a realidade?